Literatice Virtual

As Malditas!… – cap. 02

Eu dormia no meu quarto quando, muito distante da consciência, senti uma coceira no dedão do pé direito. Aos poucos, a distância entre a coceira e a consciência foi diminuindo. Quando finalmente acordei com a coceira no dedão identifiquei de imediato: ELA!… Abanei o pé com tanta força que a intenção era me livrar do conjunto da obra: o pé com ELA. Mamãe acordou com o malabarismo barulhento.

– Jesus, Maria, José… o que foi?

– É ELA, mãe!… Enorme! Tava agarrada no dedão do meu pé! Ainda sentindo as patas dela no meu dedo!

– Onde ELA ?

– Não sei. Por aí, no chão do quarto…

Mamãe, com a paciência que deve ser um dom em todas as mães, sonolenta, engatinhou pelo quarto a procurar por ELA. Eu tentava ajudar engatinhando em cima da cama.

– Não achei nada. Vai dormir. Amanhã a gente vê.

Não! Como assim “amanhã a gente vê”? E o resto da noite? ELA estava ali em algum canto, com certeza só esperando mamãe desistir da procura para investir novamente contra mim. Eu ainda sentia a comichão no dedão. E o nojo.

– Vai dormir que você esquece.

Mamãe voltou para a cama a fim de prosseguir o sono que não havia sido espantado de todo. Fiquei sentada na cama desprovida de um sentido para viver. Como voltar a dormir sabendo que ELA estava por perto? Qual a garantia que não se atreveria novamente a procurar sabe-se lá o quê no meu dedão do pé? Medão e sono. Muito sono e muito medo. E assim a noite passou, arrastada e rastejante. O dia me encontrou entre o sono insistente e o medo permanente.

Nunca mais, por maior que seja o calor, dormi com os pés descobertos. Não me lembro de ter sido algum dia indiferente à presença DELA, mas, tenho para mim, que o gatilho do terror disparou nessa noite. Com mamãe ficou, por muitos anos, o mantra que eu jamais moraria sozinha enquanto não tivesse coragem de mata-LAS.

Parece tão simples, não é? Por mais baixa e magra que a pessoa seja ainda é muito maior que ELAS. Uma boa chinelada, o serviço está feito. Mas não é nada simples. Tenho total entendimento da diferença de tamanhos. Tamanhos físicos. Psicologicamente a coisa se inverte. ELA cresce e fica muito maior que eu. Imagino que vá me tirar o chinelo da mão, correr atrás de mim e rir enquanto disparo por léguas. Uma risada demoníaca, desafiadora e nojenta.

– Tamanho não é documento, ser humano desprezível. Você já devia saber. – ela me diria.

Nem mesmo uma bomba atômica?… Como é que pode? Tem cabimento a humanidade ser exterminada e ELAS reinarem absolutas no planeta? Um planeta exterminado, mas, para ELAS está bom. O que pensariam os extraterrestres ao constatar que a humanidade foi para o brejo e sobreviveram na Terra seres rastejantes tão asquerosos? Okey, a humanidade anda meio rastejante também, incompetente para viver, mas daí a exaltação de criaturas tão inúteis, não. Porque são inúteis!… Para que servem? Deliciam-se nos esgotos, mas são incapazes de reciclar a podridão. Assustam as pessoas por nada! O que ganham com os sustos? Ganham é que uns reagem à altura e ELAS desencarnam feio. Aparecem sempre no lugar errado, na hora errada, ainda que na hora e lugar certos, para ELAS. A existência DELAS foi uma grande falta do que fazer do Criador. Desculpe aí, com todo o respeito, mas foi pura perda de tempo. As pulgas também foram momentos de criação jogados fora. Para que servem as pulgas? O Criador diante de uma imensa responsabilidade, cheio do que fazer, criando as pulgas e ELAS. Se bem que, aqui para nós, que ELAS não leiam isso, a criação do ser humano também deve estar fazendo o Criador levara as mãos à cabeça. O pior é que Ele nem pode apelar para Deus.

– Olhem bem pra eles! Pensam que são alguma coisa por serem humanos! Nós bem sabemos o que mais produzem: está bem aqui nos esgotos. – talvez ELAS falem de nós de uma maneira também nojenta.

Será que falam de nós? Ah, devem falar. Não só falar, conspirar. Repare que raramente aparecem diante dos que não AS temem. Isso seria puro suicídio. Divertido é aparecer diante de quem tem medo DELAS, embora seja uma aventura também perigosa. Assim como a placa que avisa “Cuidado com o papagaio” – porque o papagaio chama o cachorro – os tementes a ELAS podem gritar por alguém destemido e atuante.

– Caramba, que monotonia. Nada acontece de novo neste bueiro. Vamos assustar a Fernanda! – decidem.

– Cuidado que pode ter mais alguém em casa… Cuidado com os gatos…

Aí, calculam o melhor momento e o melhor lugar para a diversão quase sempre à noite. Comigo, a diversão é garantida, mas pode ser apenas uma boa sensação antes do desencarne. Viverem para contar vantagem nos bueiros raramente acontece. Podem é fugir tão apavoradas quanto eu, ou um pouco menos, mas impunes não ficam. Se me assustar e correr para um buraco, o buraco vai receber doses cavalares de inseticida. Em mim, o medo DELAS beira o pânico. Penso que só não me descontrolo totalmente por já estar combinado comigo que são encontros como casos de vida ou morte, preciso do mínimo de lucidez para a batalha. Com ELAS, numa expressão do Direito, estou sempre em estado de “defesa putativa” imaginando uma agressão, inexistente no Direito, mas existente para mim de fato. Então, em estado de alta tensão, com a adrenalina a ferver, tento elaborar um plano para extermina-las. O mais impactante é o susto. Parece que fazem de propósito. É possível que façam.

– Vamos dar um susto na Fernanda agora que ela está distraída. – talvez decidam no esgoto.

Madrugada dessas fui à cozinha na simplérrima intenção de pegar uma faca. A gaveta dos talheres abre e fecha macio, escorrega bem; daí que eu dou um puxão, espero a gaveta bater na minha barriga, ato contínuo e bem ensaiado, pego o talher e empurro a gaveta de volta… com a barriga. Pois foi dar o puxão e avistar o inferno. Chaque chaque chaque, lá estava ELA toda atrapalhada tentando se enfiar debaixo da bandeja dos talheres. Fechei rapidamente a gaveta. Estática, escutava o chacoalhar nos talheres. Estava sozinha em casa e assim ELAS preferem. Eu, diante da gaveta fechada, ELA chacoalhando na gaveta. Pega no flagra, também assustada… mas que se dane o susto DELA!

A primeira ideia que me ocorreu foi chamar um dos funcionários do condomínio. Em outra madrugada chamei, porque, ao entrar no meu quarto, assustei o que, vim saber depois, ser um gambá. O bicho danou a correr enlouquecido. Claro que eu também danei a correr enlouquecida. Fechei a porta e coloquei os neurônios para funcionar. Essa é a diferença: os neurônios funcionam em outros sustos. Seria um gambá ou uma ratazana? De imediato, olhando de relance, é difícil identificar. Tanto a ratazana quanto o gambá foram castigados pelo Criador com uma aparência horrorosa. Deus disse: “Faça-se um bicho feio!” e a natureza criou o gambá. Em seguida deve ter achado que caprichou pouco na feiura e criou a ratazana. Não digo que tanto me faz ser um gambá ou uma ratazana porque o gambá, de fonte segura, alimenta-se DELAS, e isso é de grande ajuda. As ratazanas, não sei. O fato é que não seria eu quem resolveria essa parada. Chamei um funcionário.

– Dá pra alguém vir até a minha casa? Preciso de ajuda. – falei ao interfone com a portaria.

Eu não ia contar no interfone que estava às voltas com um gambá ou uma ratazana no meu quarto. Quando o funcionário aparecesse, eu contaria. Olhos nos olhos é mais fácil de persuadir uma pessoa a nos fazer um favor.

– Tem algum bicho aí dentro do quarto, mas não sei se é um gambá ou uma ratazana. Eu abro a porta, você entra e eu fecho a porta rapidamente para o bicho não fugir e correr pela casa. Pode ser?

Assim foi. Fiquei atenta auditivamente ao que acontecia no quarto. Coisas caindo, funcionário caindo…

– A senhora tem um espeto? – o funcionário gritou dentro do quarto.

Espeto? Jesus, ele vai espetar o bicho? … Expetativa hipócrita, porque a ideia era acabar com o problema. De que forma? Num diálogo com a gambá ou a ratazana?

– Olha só, você não é bem-vindo a este quarto, a bem da verdade, não é bem-vindo a esta casa, então, por favor, retire-se.

Fui buscar o espeto no kit de churrasco. Peguei logo o mais comprido. Entreguei o espeto pela fresta da porta. Não demorou o funcionário do condomínio saiu orgulhoso com a caça espetada. Dei um monte de passos para trás.

– É um gambá. – afirmou.

Era, pensei.

– A senhora vai querer o espeto de volta?

– Não, pode jogar tudo fora.

– Jogar fora?!… Não, a bicha vai pra brasa!…

Pois é, tem gente que come. E não porque passe fome. “O que é de gosto regala a vida”, diz o ditado, pois que comam. O importante é que meu problemão estava resolvido. Acomodei-me no quarto e nem ao menos havia o famoso mau cheiro que os gambás exalam para se defenderem. Mas, na madrugada em que ELA estava presa na gaveta e eu estática, fora, achei por bem não fazer o mesmo apelo aos funcionários do condomínio. Não, não deixaria ninguém no condomínio saber que tenho tanto horror a ELAS. Assim como temos o direito de nos negar a produzir provas contra nós mesmos, é prudente guardar os medos para que não sejam também usados contra nós um dia. E aqui estou fazendo pior no blog… Ah, sei lá!… O ser humano é um bocado estranho, e concluo isso por mim. Tenho um amigo que tinha a mania de brincar assim:

– Tem uma (…) no teu pé!…

Eu sabia que era mentira, mas me subia a mesma agonia como se fosse verdade. É uma sensação horrorosa pronta, do tipo enlatada.

– Para com essa brincadeira que isso vai terminar com a nossa amizade… – avisei na primeira vez.

Ele fez a segunda. É a maldita mania de subestimar os medos alheios.

– Caralho!

ah, eu bem que tento escrever sem usar palavras chamadas de baixo calão, mas, na relação com ELAS, não consigo.

– Você não acredita que a nossa amizade vai terminar por causa dessa cretinice sua? É uma fobia, ignorante!

A amizade não terminou porque, antes de tudo era realmente uma amizade, e porque ele entendeu que a brincadeira, além de ser totalmente desprovida de graça, me fazia passar mal. ELA dentro da gaveta fazendo barulho e eu fora com taquicardia. Abrir a gaveta não. Para quê? Para ver o que eu já tinha visto? Para dar chance DELA sair e travarmos a continuação do confronto pela cozinha?

– Inseticida. – decidi.

Tenho latas e mais latas de inseticida na despensa. Caso eu veja que só tem meia dúzia de latas, a sensação é que o estoque está acabando e pode faltar na hora H do dia D. Compro mais meia dúzia. Tem uma lata de inseticida em cada cômodo da casa.

Abrir a gaveta para borrifar inseticida nem pensar. Então, acionei o spray pela fresta da gaveta. O barulho aumentou lá dentro. O efeito que eu esperava. Apertei mais o botão da lata. ELA se debatia.

– Morre maldita!

Isso não é legal de se dizer; em nenhuma situação. Mas estávamos num duelo. Essa é a sensação: só uma de nós vai sobreviver à batalha.

Esperei até que cessasse o barulho a indicar a existência de vida no interior da gaveta. Não garante nada porque, assim como os gambás, ELAS também se fazem de mortas. Por dias (!) achei que UMA tinha “passado desta para melhor” – o que com certeza acontece com ELAS, pois pior não pode ser – e me bastou gastar toda a coragem e toda energia nas vassouradas. Colocar na pá e jogar no lixo era outra tarefa árdua e eu precisava de um tempo. Devia ser uma segunda-feira, deixaria para a diarista na quinta. O que eu achava ser um cadáver jazia na área de serviço. Nas primeiras horas pós assassinato, as formigas chegaram aos montes para o banquete. Assim seria melhor. As formigas dariam conta do corpo assim como os urubus devoram a carniça. Eu nem me preocuparia em colocar na pá e jogar no lixo. Acontece que, no dia seguinte, o cadáver estava no mesmo local, intacto. Por que? Estranho. Possivelmente a inseticida. Não é por ser uma formiga que tem que ser burra ou imprudente. Ficaria para a diarista. Mas, no terceiro dia, me enchi de ver aquilo que, mesmo inerte, me assusta. Peguei a vassoura e a pá. Pois foi eu cutucar com a vassoura e ELA conseguiu se desvirar. Saiu andando como se nada tivesse acontecido setenta horas antes!

– Maldita!

Mais vassouradas.

– Morre, infeliz!

Mais vassouradas. A vassoura quebra e ELA não morre! … Parecem blindadas ou de borracha! Por isso as formigas desistiram do banquete, porque ELA estava viva!…

– Todas fora daqui!… – ELA teria dito às formigas. – Acabo com o formigueiro assim que eu conseguir me desvirar! É uma promessa!

Assim como as tartarugas, uma vez de patas para cima, ELAS raramente conseguem se recompor. A gente pensa que venceu e, quando volta ao local do crime, ELA sumiu. Aí é outro desespero. Para onde foi? Vai se vingar? Vai chamar as comparsas para uma vingança maligna?

Bati na gaveta com a lata de inseticida. Silêncio. Bati de novo. Nada. Morta não está, isso é certo. Pode estar desmaiada. Bendito seja que o garfo comprido estava no escorredor. Abri a gaveta com a ajuda do garfo. Com certeza ELA estava debaixo da bandeja dos talheres. Com a ajuda do garfo consegui levantar a bandeja. Lá estava, quietinha. Bandeja levantada, me enchi de coragem e joguei tudo dentro da pia. É claro que a bandeja e os talheres teriam que passar por uma lavagem demorada e eficiente. Com o campo da batalha aberto, borrifei inseticida diretamente NELA. Mexeu-se a vagabunda. Em mais um tico de coragem, resgatei o corpo com a pá de lixo. No chão, viva, mas sem forças para reagir, enchia-a de chineladas. Vassoura, pá e lixo. Mais inseticida no lixo por via das dúvidas.

Essa batalha levou pelo menos meia-hora. Fui para o meu quarto com os nervos em frangalhos, mas com a sensação reconfortante da vitória. A própria e a morte da própria nada têm a ver com essa sensação. É a vitória sobre o medo. Um puta medo!…

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