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O Milagre(?) da Caverna tailandesa

Era o dia 23 de junho. Seria um dia como outro qualquer para o time de futebol Moo Pa (Javali Selvagem) se, depois de mais um treino, os doze meninos – entre onze e dezesseis anos – e o treinador de vinte e cinco anos, não tivessem tido a ideia de um passeio no conjunto de cavernas de Tham Luang, no parque florestal Khun Nam Nang Non, ao norte da província de Chiang Rai. Péssima ideia, ainda mais na temporada das monções na Tailândia. Entre julho e novembro, os temporais desabam constantemente e a qualquer momento, a água da chuva inunda as cavernas. quem vive em Chiang Rai sabe disso, mas… mas acontece que uma ideia é apenas uma ideia até ser colocada em prática e surgirem as consequências, boas, ruins ou nenhuma. Esta ideia teve consequências terríveis, mas os meninos e o treinador com certeza não imaginaram quão terrível seria.

Estavam todos no interior da caverna, em polvorosa, como acontece com crianças em grupos, quando a água da chuva chegou e empurrou todos cavernas mais adentro. Encontrar um local seco e seguro para esperar a água ir embora, foi o que pensou o grupo menos alegre. Encontraram um espaço pequeno, entre a base de pedra e os paredões, e lá ficaram à espera da água baixar, o que certamente aconteceria, no máximo, na manhã seguinte. A água iria embora com a mesma rapidez com que chegou. Essa era a previsão otimista, mas não foi assim. As horas passaram, os dias passaram, a água não baixou e os minutos no cubículo escuro, úmido, abafado e silencioso começaram a passar lentamente. Eis a consequência de uma péssima ideia.

Vinte e quatro horas, mais vinte e quatro horas, outras vinte e quatro horas… até que nove dias se passaram do lado de fora da caverna. Dentro, o grupo não fazia ideia se era dia ou noite. Frio e fome. Ao fugir da água, o grupo foi parar a quatro quilômetros de distância da entrada, nas entranhas da caverna.

Com o anúncio do desaparecimento dos meninos e do treinador, parentes, familiares e autoridades locais foram os primeiros a se preocuparem – e muito – com a situação. Desespero não, incrivelmente não. Logo apareceram equipes de resgate dos Estados Unidos, Japão, Reino Unido, China e Austrália. No nono dia, desde a péssima ideia de passear na caverna, dois mergulhadores britânicos – Rick Stanton e John Volanthen – emergiram numa galeria e lá estava o grupo, unido, encolhido. Não deveria haver surpresas diante do que se procura encontrar, no entanto, diante de algo tão precioso, acontece o espanto. Treze vidas. Diante das treze vidas, algo surgia da água barrenta, companheira cruel de cativeiro: duas criaturas mascaradas. De olhos arregalados, Adul Sam-On, de quatorze anos de idade, um apátrida, nascido em Mianmar e criado na Tailândia, foi o primeiro a falar, em inglês, com um dos mergulhadores britânicos. Adul fez o gesto do wai ( as mãos postas ), uma saudação da cultura tailandesa. Um gesto que o mundo veria nos próximos dias nos vídeos escuros gravados dentro da caverna.

Estavam ali reunidos, na caverna, os elementos de um filme de terror e ou de um profundo e demorado pesadelo. Deste ponto em diante, com comida e médicos para os primeiros socorros ao grupo. O início da estratégia de um resgate com jeito de impossível. As previsões iniciais indicavam pelo menos quatro meses de isolamento, apreensão, aflição, angústia, medo… até outubro, quando termina a temporada da chuva e a água baixa no interior das cavernas. Outra opção era fazer várias perfurações na montanha para içar os meninos até o topo; opção também demorada, com risco de desmoronamentos. Outra opção: treinar o grupo para mergulhar na água traiçoeira e barrenta. O percurso a nado ou submerso – repleto de obstáculos e passagens estreitas – foi calculado em dois quilômetros e meio. Pelo menos cinco horas na água: muito arriscado para mergulhadores bem treinados, risco extremo para os meninos. Opções em paralelo à previsão de mais chuva, mais inundação, muito mais dificuldades. O encontro do grupo foi um grande alívio. Todos estavam vivos, mas até quando? Quanto tempo aguentariam os meninos e o treinador no ambiente totalmente avesso à vida?

Em meio ao frenesi provocado pela Copa do Mundo de Futebol, o resgate da caverna tailandesa entrou na pauta da mídia mundial. Mais orações e pensamentos positivos chegaram à Tailândia revelando a boa essência humana adormecida. No comando da operação de resgate, com centenas de voluntários e profissionais úteis, o ex-governador da província de Chiang Rai, Narongsak Osottanakom, foi infeliz ao expressar o que o mundo pressentia: “Um resgate impossível”. Mas logo mudou o discurso para um otimismo necessário. Bombas sugavam sem parar a água do interior da caverna e foram construídas contenções para evitar a entrada de mais água.

Fazia três dias, desde o momento em que o grupo foi encontrado pelos mergulhadores britânicos. Vídeos mostravam os meninos e o treinador muito magros, mas vivos!… O treinamento para a saída pela água começou. Máscaras faciais integrais, menos arriscadas para mergulhadores sem experiência.

No quinto dia foi detectada uma baixa significativa de oxigênio na cápsula de salvação onde o grupo estava. Pior: um mergulhador aposentado da marinha tailandesa, Saman Gunan, que havia se apresentado como voluntário, morreu por falta de oxigênio no retorno de um mergulho. A primeira morte na previsão de outras bem prováveis nesse resgate beirando o impossível. Mais tensão, mais pressa… pressa, delicadeza e precisão, uma combinação difícil.

Nem mais quatro dias, quanto mais quatro meses. As perfurações na montanha foram em vão. A rota da salvação era mesmo pela água barrenta, mas teriam os meninos e o treinador, além da total falta de experiência em mergulhos, condições físicas para o percurso de quase dois quilômetros? Ficou decidido que as primeiras tentativas seriam feitas com os meninos em melhores condições físicas. A antiga seleção natural estava de volta à caverna. Nas primeiras tentativas, o sucesso do resgate aumentaria a confiança para a continuidade do trabalho exaustivo, com cem por cento de risco. Um fracasso inicial seria motivo de um abatimento que talvez tantos heróis e heroínas não conseguissem suportar.

Junto com as estratégias do resgate, o mundo conhecia a história das almas presas na caverna, alvos da torcida, das orações e pensamentos positivos. Adul, o menino apátrida que se comunicou em inglês com os mergulhadores britânicos, também fala tailandês, birmanês e chinês. O treinador, Ekkapol Chantawong é um ex-monge budista. Além de tudo o que passou no cubículo da caverna, ainda precisou lidar com o sentimento de culpa por ser o responsável pelos meninos, consequentemente, pela execução da péssima ideia do passeio. Os anos no templo ensinaram a meditar e a exercitar ensinamentos preciosos que ajudaram na sobrevivência do grupo. A espiritualidade é forte neste recanto da Ásia e certamente foi crucial para manter a força física e moral do grupo que, de início, se concentrou em manter a calma e pensar em soluções para sair da caverna. Chegaram a cavar, mas logo perceberam que era só gastar a pouca energia que tinham.

Centenas de pessoas envolvidas no resgate. Tanta gente… tantas idéias… tudo muito arriscado. Um compreensível cálculo de quantos morreriam para salvar … quantos? E o resgate começou efetivamente num domingo, dia oito de julho, com a retirada dos quatro meninos menos debilitados. Os vídeos gravados mostram mergulhadores profissionais conduzindo os meninos em macas, com as máscaras que cobrem todo o rosto e facilitam muito a respiração do oxigênio em tubo. Ideia genial!… O que os meninos precisavam fazer era fechar os olhos, manter a calma, quem sabe meditar por mais cinco ou seis horas e se deixarem levar pelas mãos salvadoras. Perfeito!… Meninos e mergulhadores vivos na saída da caverna. Afinal, a missão era possível!… No dia seguinte, segunda-feira, mais quatro meninos. A mesma operação de salvamento, o mesmo fabuloso sucesso. Na terça-feira, os quatro meninos restantes e o treinador foram resgatados. Todos com vida. Salvados e salvadores, todos vivos para contar uma história fantástica que os produtores de cinema sonham em reproduzir e jamais conseguirão ser precisos.

No hospital, os meninos e o treinador continuaram isolados, mas num ambiente acolhedor em que podiam ver pessoas queridas através de um vidro transparente. Nenhum escândalo, nenhuma histeria, nenhuma revolta… e assim foi desde o início da saga sinistra. Os meninos e o treinador eram criaturas bem diferentes de quando entraram na caverna dezessete dias antes. Muito mais que os dois quilos de peso, em média, que perderam nos dias de fome, aqueles dias de isolamento na escuridão, no frio, no silêncio assombroso, no jejum forçado, deixaram marcas para toda a vida. Talvez continuem com o sonho de se tornarem profissionais do futebol, o mesmo sonho que tinham antes de entrarem na caverna e terem as vidas colocadas em alto risco. Na entrevista coletiva, após o isolamento hospitalar, um dos meninos disse quer ser mergulhador da marinha tailandesa, como alguns dos muitos heróis e heroínas do incrível resgate.

No futuro, será interessante saber o que aconteceu com esses doze meninos e com o treinador. Por que todos saíram vivos do que tinha tudo para se tornar um túmulo coletivo, oitocentos metros abaixo da superfície? Por que a missão impossível se tornou possível? O que está reservado para eles? Por que eles conseguiram sobreviver enquanto outros morrem por tão pouco? Foi um milagre? Então Deus existe e conduziu o resgate? Então Deus permitiu que todos sobrevivessem? Teria sido uma demonstração divina ao nosso mundo de que a essência humana de solidariedade está viva? Teria sido uma anuência às orações em tantas partes do nosso mundo? Ou nada disso tem a ver com Deus e, assim como as fatalidades, os sucessos formidáveis acontecem pura e simplesmente ao acaso? Enfim, o resgate dos Javalis Selvagens aconteceu no século XXI, no planeta Terra.

Uma frase atribuída ao pensador francês Jean Cocteau que, analisada ao pé da letra garante a total impossibilidade, ganhou significado possível e comprovado neste acontecimento imensurável: “Não sabendo que era impossível, foi lá e fez”.

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