Animais

A Multiplicação dos Quelônios

A história de Jeremias

Por que o título com a palavra quelônios? Por que não fui direto a tartaruga, cágado ou jabuti? Porque só sei que Jeremias não era uma tartaruga, mas não sei, com certeza, se era um cágado ou um jabuti. Arrisco um jabuti, mas, repito, não tenho certeza. Pelas minhas pesquisas – que excluíram a tartaruga ou assim denominaria Jeremias – a criatura que viveu muitos anos comigo pode ser um cágado ou um jabuti. Na verdade, nem o nome Jeremias corresponde ao correto. Para alguém que não sabe distinguir uma tartaruga de um cágado e de um jabuti, imagina saber se é macho ou fêmea?…

Foi minha irmã quem chegou a casa com a novidade: algo minúsculo com quatro patinhas e uma couraça em formação.

– Comprei na feira, vive na água… – minha irmã informou à família.

Papai foi indiferente, mamãe não gostou nada e eu não gosto da ideia da venda de animais na rua, ainda mais espécies fora da lista de cachorros e gatos. Mas lá estava a criaturinha, o jeito era cuidar dela. Se estava na água, devia continuar na água. De início, no bidê do banheiro.

– Ah, não!… No bidê, não!… E quando eu usar o bidê? – foi mamãe a vetar a ideia.

Uma bacia então. Água e alface. O nome, não me lembro de onde tiramos, mas, a então tartaruga, foi batizada de Jeremias. Disse o vendedor que era um macho.

Os dias passaram e Jeremias ficava o tempo todo com a cabeça fora da água. Estranho. Chamamos uma pessoa que tinha muita intimidade com animais e algo parecido com Jeremias no apartamento dela.

– É um jabuti. Não é de água. – foi o veredito.

Fora da água então. E Jeremias passou a andar livre pelo apartamento, o que nos preocupava. O jabuti andava livre, nós não. Tínhamos que andar olhando para o chão com muita atenção para não pisar no Jeremias.

E Jeremias foi crescendo. O casco começou a apresentar gomos. Continuamos a andar pela casa com muito cuidado para não pisar no Jeremias e também para evitar uma topada no casco do bicho. Mamãe já estava numa idade em que é desaconselhável andar de gatas.

– Mãe, o que está fazendo agachada assim? Toda torta? – era eu preocupada com a posição da minha genitora.

– Estou procurando o Jeremias. Não o vi hoje. – era ela a responder passando os olhos por debaixo da cristaleira.

Em duas ocasiões que inventamos levar um bicho para casa, mamãe foi contra. Dizia que ia sobrar para ela o trabalho de cuidar. O primeiro bicho foi Rick, um gato que apareceu na casa de praia da vovó. Passamos o fim de semana na casa e o filhote não saiu de perto de nós. Claro que no domingo à noite, hora de fechar a casa e irmos embora, Rick foi junto. Não se chamava Rick, chamava-se Shirley. Eis a foto dele filhote.

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É muito difícil descobrir se é macho ou fêmea em filhotes de gatos. Não vimos o saquinho, então era fêmea, ficou Shirley. Meses depois, quando apareceu o kit-macho, passou a se chamar Rick por inspiração do cantor Rick Walkeman, por serem os dois muito branquinhos. Rick Maria Esteves ( na família todos têm “Maria” ) viveu conosco 16 anos. Eu ainda morava com papai e mamãe. Uma peste adorável. Mas a história de Rick será contada em outra ocasião. Agora, o momento é de Jeremias e eu já morava por conta própria em outro apartamento. Mamãe foi contra a adoção do Rick e de Jeremias no início, mas, dias depois, passou a ser tão chegada a eles quanto nós.

– Cadê Jeremias? Alguém viu o Jeremias? – era mamãe perguntando o tempo todo, muitas vezes agachada, a arriscar uma encrenca na coluna.

– Deixa ele, mãe. – era eu preocupada. – Daqui a pouco ele aparece.

Às vezes aparecia logo, outras vezes custava a aparecer. E assim foi, até que me mudei para uma casa com jardim. Chegamos à conclusão que Jeremias viveria muito melhor entre plantas e insetos que no assoalho de um apartamento.

E Jeremias cresceu. Passava a maior parte do dia no jardim. Não sei se comia insetos e plantas, mas sei que, vez ou outra, entrava em casa e se concentrava no pote de ração dos gatos. Esticava o pescoço e dava um jeito de esticar também a língua para abocanhar a ração. Não raro, Jeremias virava o pote e espalhava a ração dos gatos. Eu observava a façanha. Terminada a refeição do jabuti, eu desvirava o pote e o enchia de ração outra vez. Os gatos não se importavam. Os dias passavam assim. Jeremias parecia ter gostado da mudança. Mais ainda o Alfrey, meu querido dog alemão, que tinha espaço para caminhar depois de crescer num apartamento.

Um dia, contando com a lerdeza das tartarugas, ou jabutis, ou cágados, deixei a porta da garagem aberta enquanto fazia lá qualquer coisa que não me lembro. Alfrey estava dentro da casa, não sairia; Jeremias estava pelo jardim, caso se aventurasse a sair pela porta da garagem daria tempo de eu ver e impedir. Mas não vi, nem impedi. Jeremias sumiu. Procurei à exaustão. Só podia ter saído pela porta da garagem aberta. Ganhou o condomínio. Dei o alerta na portaria.

– Pois é, sumiu. Se vocês virem uma tartaruga por aí, é daqui.

Disse tartaruga para não complicar com jabuti e cágado. Tartaruga, pronto. Vissem uma tartaruga, me avisassem para eu ir pegar. No dia seguinte, uma vizinha a um quarteirão de distância, comunicou o aparecimento de uma tartaruga na casa dela. Fui buscar. Era Jeremias.

– Estava de namoro com o meu jabuti. – a vizinha me contou. – Foi até bom porque o meu estava tão sozinho. Traga-a para outras visitas.

“Traga-a”? A? Como assim se Jeremias era um macho?

– Não, é uma fêmea. – revelou-me a vizinha. – Vi bem como os dois ficaram.

Há nomes que são comuns aos dois gêneros, mas não é o caso de Jeremias. E, juro, eu chamava “Jeremiiiiaaaas” e o jabuti aparecia. Ficaria Jeremias, mesmo sendo uma fêmea. E, sim, eu a levaria para visitar o namorado. Acontece que os humanos, em geral, têm mais o que fazer que acordar e levar o jabuti para namorar. Quando eu tivesse um tempo… num sábado ou domingo…

Num outro dia, abri o portão do jardim da casa para fazer qualquer coisa que não me lembro também e vi Jeremias em ritmo acelerado. Lá saiu pelo portão em disparada. “Disparada” sim, para um jabuti. Caminhava muito rápido na direção da casa do namorado. Segui-a até o destino final.

– Deixe os dois um pouco juntos. – a vizinha propôs. – Mais tarde eu a levo pra casa.

Combinado. Mais tarde, a vizinha levou Jeremias de volta.

– Daqui a pouco teremos ovos enterrados nos jardins. – comentei.

– É possível, o namoro está pegando fogo. Não perdem tempo. – a vizinha acrescentou.

Mais alguns dias, vou ao jardim e vejo um jabuti menor que Jeremias.

– Estranho, Jeremias encolheu? – pensei. – Claro que não. De quem será esse jabuti? Será que veio atrás do Jeremias?

O jabuti visitante era menor do que Jeremias e o namorado dele, dela. Então, não era o caso de uma visita do namorado com saudades da namorada. Nem deu tempo de eu interfonar para a portaria e comunicar o aparecimento de uma tartaruga estranha, apareceu outro jabuti!!!… Eu tinha em casa três jabutis de diferentes tamanhos. Aí está a foto.

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O que estava acontecendo? A comunidade de jabutis do condomínio havia se apaixonado por meu Jeremias? Minha?…

Interfonei para a portaria para comunicar o aparecimento de dois jabutis que não eram da minha casa. Alguém devia estar atrás deles.

– A sua tartaruga não estava sumida? Eu encontrei e coloquei na sua casa. – me disse um dos funcionários.

Enfim, o funcionário colocou um jabuti na minha casa – na certeza que era a minha “tartaruga” sumida que, afinal, estava namorando numa casa vizinha – e a filha da vizinha da casa do lado à minha veio me contar, toda alegre, que havia encontrado o Jeremias na rua e o colocou no meu jardim. De repente, eu estava com três jabutis. Ou dois cágados e um jabuti; ou dois jabutis e um cágado. Interfonei novamente para a portaria com o tema “tartarugas”.

– Vejam aí quem está procurando suas tartarugas porque tem duas aqui em casa que não são minhas. A minha já apareceu!!!!…

Apareceram os donos dois outros dois jabutis e a vida seguiu. Quando precisei me mudar da casa de volta para um apartamento, Alfrey ( o dog alemão ) e Nando ( o gato siamês ) haviam partido e eu tinha dois gatos na bagagem: Ronnie e Dudu. Aí estão as fotos dos dois que viviam agarrados, mas tinham hábitos bem diferentes. Ronnie era – e é – totalmente caseiro; passeia pelo jardim, mas entra logo em casa ao menor sinal de estranheza. Dudu caía na gandaia; passava noites fora de casa. Para Dudu, a mudança para um apartamento foi horrível. Foi aí que resolvi colocar rede de proteção em todas as janelas, com medo do Dudu se atirar num pombo a passar voando ou atender ao chamado de uma gata na rua. Eis as fotos de Ronnie embolado com Dudu e Dudu deprimido na janela com rede.

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Oito anos depois, voltamos a morar no mesmo condomínio anterior, na casa da vizinha que a filha achou que encontrou Jeremias. Dudu e Ronnie voltaram comigo. Ronnie continuou frequentando o jardim e também cultivou o cuidado de entrar em casa ao menor sinal de coisas estranhas. Dudu parece ter esquecido a vida louca, ficava dentro de casa. Dudu teve o que os veterinários diagnosticaram como pancreatite, ficou internado em uma clínica uma semana e morreu pouco tempo depois da mudança. Foi quando comuniquei a São Francisco que minha missão com os animais, chamados irracionais, terminaria com o Ronnie. Não sei se São Francisco não ouviu, ou ouviu e se lixou para mim, sei que, meses adiante, numa viagem a Portugal, encontrei Nuno ( um gato ) que já tem a história contada e publicada neste blog. Encantei-me por ele e o trouxe para o Brasil. E aqui estão Ronnie – a caminho de completar 17 anos de idade – e Nuno, que nem desconfio a idade que tem. Jeremias? Bem, nenhum ovo foi encontrado nos jardins. Jeremias recebeu uma proposta de se mudar para uma fazenda no interior do estado do Rio de Janeiro. Pesei os prós e os contras. De contras, me ocorreu o amor que tinha por ele, ela, e a paixão dele, dela, pelo jabuti da vizinha. No mais, eram só prós. Entendi que a mudança seria o melhor para Jeremias. Havia na fazenda outros jabutis, Jeremias encontraria um novo amor e … seria feliz para sempre. O sempre dos quelônios é muito tempo.

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