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Harmoniosa e sonora bagunça na igreja

Há uma igreja na única praça da pequena cidade do interior de Portugal. Tantas vezes estive naquela praça que seria impossível chegar próximo de um número exato. Mais de uma centena, com certeza. A olhar de propósito para a igreja, com alguma atenção, foram menos de dez, dez vezes. Estar no interior da igreja, digo já: três vezes. Pode ser que tenha acontecido de eu entrar mais uma vez, ainda criança, agarrada à mão da minha mãe, mas disso não lembro. Ficam as três vezes que tenho como certas.
A igreja não é tão grande que possa se candidatar a basílica, nem tão pequena que se possa chamar capela. É simples. Não chega a ser pobre, mas está muito distante da riqueza fácil de encontrar em congregações católicas neste mundo atualmente nem tanto de “meu Deus”. Nas duas primeiras vezes que entrei, estava vazia. Nem padre, nem sacristão, nem uma alma viva sequer, pedindo qualquer coisinha ao Salvador, porque é isso: agradecer e, via de regra, fazer um pedido. Nas duas primeiras vezes, aquietei-me alguns minutos para um Pai Nosso, uma Ave Maria, um muito obrigada pelas facilidades que o Senhor tem me proporcionado ao longo desta vida e, o infalível pedido, proteção porque a situação anda muita esquisita. Mas a intenção mesmo era gravar cenas do interior e exterior da igreja para compor mais tarde com outras cenas daquela cidade e da aldeia onde dividi minha infância, adolescência e maturidade com a cidade do Rio de Janeiro, no Brasil. Na terceira vez…
Na terceira vez foi um susto! Um bom susto! Entrei e havia lá uma grande bagunça. Mal se via o altar e havia muito barulho. Estavam lá mais ou menos quarenta jovens músicos a ensaiar para uma apresentação por época do Natal. Num estado de, percebo agora, prazer, pois, naquele dia, pareceu-me um estado confuso, procurei espaço num dos vários bancos para acomodar o corpo e o espanto. Com dificuldade encontrei onde espremer meus quadris entre as caixas dos instrumentos espalhados. Eu não havia sentado totalmente quando os jovens iniciaram uma peça musical. Sentada na beira do banco, sentindo-me ainda mais contrita por estar “na casa do Senhor”, passei a prestar atenção no que se passava diante de mim. Entre as dezenas de jovens – rapazes e raparigas – totalmente concentrados nas partituras em pedestais, sob a batuta de um maestro, nem tão jovem, de calça jeans e casaco de malha – fazia muito frio fora e dentro da igreja – três rapazes destoavam ao lado do tambor, um dos instrumentos mais atrás numa orquestra. Eles riam. Não chegavam a gargalhar, mas riam e mexiam-se muito. Um deles tinha a simples missão de, muito raramente, bater com o ferrinho no triângulo. Os outros dois nem isso. No mais, todos e todas totalmente compenetrados nas partituras, algumas compartilhadas, e no maestro. E por ali fiquei meio que hipnotizada. Não só com a música, bonita música, mas com a transformação da igreja num espaço de ensaio de uma orquestra. E no fato visível e surpreendente de haver, numa cidade pequena, tantos jovens tão bons músicos. Eu já sabia que há na cidade uma escola de música, o que foi também uma surpresa, mas, com sinceridade, não esperava que daquele mato saísse algum coelho. Pois lá estavam muitos coelhos. Estranhamente, ainda que tivesse a câmera nas mãos, nada gravei. Não que não me lembrasse, lembrei. Acontece que os procedimentos de gravação turvam o real foco da percepção. Até gravo na intenção de repassar o que sinto, mas não é assim que acontece. Não com exatidão. É sempre um arremedo do que mexe comigo. O fato é que não ousei interromper a total hipnose causada por tão agradável surpresa. Naquela harmoniosa sonora bagunça, a igreja me pareceu perfeita para uma verdadeira prece, uma direta conexão com o Divino.

Preciso contar que entrei na igreja de carona nos passos em vão dos que estão a “fazer hora”. Deixei numa lojinha da praça um smartphone bom na troca por um ainda melhor e foi o tempo de passar de um para o outro os dados da Nuvem. Ao redor da mesma praça, de uma cidade pequena no interior de Portugal, num espaço de duas horas, regalei-me com o ensaio da orquestra e prossegui a viagem com um telefone em dia, em horas e em segundos com o de melhor em tecnologia no mundo naquela altura.

Preciso apreciar mais os improvisos da vida que também podem resultar em boas lembranças. Numa viagem a meu ver cara e cheia de imprevistos tensos, as duas horas no centro da cidade sobressaem no que trouxe de volta para a minha casa. Ah!… e a velocidade das nuvens no céu de Lisboa por aqueles dias de inverno. Como corriam as nuvens…

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