Literatice Virtual

Ronnie, meu molequinho amado

RONNIE,

MEU QUERIDO, MEU COMPANHEIRO, MINHA COMPANHIA,

Meu molequinho amado…

                     

O dia 17 de outubro de 2016 foi horrível para mim. Libertei você de um sofrimento que não fazia nem faria qualquer sentido. Tirei você daquela jaula infecta, barulhenta e deprimente da clínica veterinária. O tratamento proposto, incluindo transfusão de sangue, seria terrível para você e a “doutora” já declarava que o resultado seria nenhum. A dor foi imensa e a saudade é arrasadora, meu filhotinho amado. Que falta você me faz. Na nossa despedida eu não queria ter chorado tanto, porque você não gostava de me ver chorar. Ficava aflito, batia delicadamente com a patinha no meu rosto, me lançava um olhar sério… E eu engolia o choro. Quantas vezes parei de chorar, de imediato, diante da sua aflição. E já estou aqui chorando, meu molequinho amado. Mal enxergo as teclas do computador. A saudade de você é imensa. Estivesse eu aqui na cama, entortando a coluna, a escrever, você estava do lado, ou em cima das minhas pernas, ou do meu pé.

Muitas vezes assistimos televisão juntos, você deitado nas minhas pernas. Embora o seu sono fosse quase sempre profundo, eu não me mexia para não te incomodar. Uma noite, zapeando pela programação da tevê, encontrei um programa sobre bichos. Quando dei por mim, você estava prestando atenção no programa. E lá fiquei eu sem trocar de canal por mais de meia hora até você se desinteressar.

        

Você parecia se sentir bem junto de mim e eu me sentia bem por você mostrar que confiava em mim. Mais que a de um ser humano, penso que a confiança de um animal é um enorme privilégio.

Com dezesseis anos de vida, você continuava a ser o meu filhotinho amado. E vai ser sempre. Amei você, Roninho, desde o dia 22 de setembro do ano 2000. Fazia uma tarde ensolarada no Rio de Janeiro. Eu estava no trânsito a caminho de mais um dia de trabalho. O telefone celular tocou.

– Sabe a gatinha, pequenininha, frágil que achei que era um filhote abandonado? … Está parindo um monte de gatos!… Até agora já são três e está vindo mais!…

     

                                               A Gata-mãe

Minha irmã parecia muito assustada. Como podia a gatinha, tão miúda, com a aparência de um filhote, resgatada da rua da amargura, estar prenha? A gatinha com aparência de filhote perambulava pelas ruas do bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, sozinha, miando baixo, e deve ter percebido que aquela mulher que vinha caminhando com o marido tinha cara e jeito de quem não resistia a um apelo de patas. A veterinária fez os exames básicos, deu as vacinas e o remédio para vermes e NÃO percebeu que havia novas vidinhas dentro dela. Uma dessas vidinhas, você, meu molequinho amado.

– Fica calma… – foi tudo que conseguir dizer, rindo.

– Calma não estou, estou resignada. Vamos ver quantos mais aparecem.

Na época eu tinha o Eduardo, Dudú, com pouco mais de um ano de vida. Um nervosinho adorável. Na intenção de salvar alguns gatos pingados da fome nas ruas da cidade de Maricá e ciente da minha tristeza por meus dois amados companheiros, Alfrey e Nando terem partido (meu querido Xandi, o vegetariano, não chegou a vir morar conosco na casa)…

  

        Alfrey                                                     Nando                                                               Xandi

… uma amiga aproveitou uma visita e trouxe o Dudu. O porqueirinha bufava!… Um palmo de gato rajado, irritadíssimo.

     

                                                      Dudu filhote

– Ái, caramba. Ele é muito brabinho… – analisei diante da amiga vexada.

– Escuta aqui!… – minha amiga encarou o irritadinho. – Você para com os bufos ou vai se ferrar!…

O verbo foi mais duro que “ferrar”. Recado mais direto impossível. E o resultado foi imediato: Dudu se acalmou muito. E ficou. Sugeri que minha amiga se tornasse psicóloga de gatos.

            Gata-mãe / família do Ronnie

No final do dia 22 de setembro do ano 2000, eram seis filhotes paridos pela gata miúda, chamada sempre simplesmente de Gata-mãe. Uma bela família. Talvez você seja esse que sobressai na foto, não tenho certeza.

Tanto o Dudu precisava de um companheiro felino quanto minha irmã precisava de ajuda com a gataiada, então, declarei que adotaria uma das crianças. Era o tempo de desmamar e se mudar para a minha casa.

Assim que terminou o tempo do leitinho nas tetas, tive a dificílima missão de escolher apenas um entre seis filhotes. No dia da escolha, entre todos os irmãos e irmãs espevitados, um dormia tranquilo e sossegado.

– Aquele. – mostrei para a minha irmã.

Dudu aceitou você sem bufos e você aceitou o Dudu.

       

                                          Dudu e Ronnie crescendo juntos

Desde filhote, você, bem ao contrário do Dudu, preferia ficar dentro dos limites da casa. Quando eu estava em casa, preferia ficar nos limites do meu espaço, bem juntinho. Era um carrapatinho carinhoso. Um companheiro e uma companhia silenciosa. Bem, nem sempre silenciosa. Às vezes miava insistentemente para mim. Um petisco, um colinho… Era um solicitador adorável. Com o tempo, nos entendemos bem. Eu sabia o que significavam os seus variados miados e você entendia o que eu dizia. Tivemos muitas conversas compridas e esclarecedoras.

Você preferia ficar perto de mim, mesmo que o começo da nossa conviência tenha sido numa casa de um condomínio com inúmeras tentações para os felinos. Mas o teu limite era em cima do muro para observar o que acontecia lá fora.

                            

Ronnie na entrada da                           Ronnie no jardim

Acontetecesse algo que você avaliasse como ruim, ou arriscado, logo corria para dentro de casa; se eu estivesse em casa, corria para perto de mim. E não faltou a você modelo para exercitar a felinidade. O nosso Dudu, com um ano a mais, ganhava o condomínio sem hora para voltar. Chegava sujo, uma ou outra vez machucado, mas penso que feliz por viver as aventuras que, dizem, são inerentes aos gatos. Embora você e Dudu, não raro, se acomodassem e até dormissem agarrados, e nunca brigassem, havia uma grande diferença de preferências e de comportamento.

 

                                                          Ronnie e Dudu sempre agarrados

Okey, Dudu nasceu num terreno baldio, ao “Deus dará”, como se diz, com a mãe se desdobrando para dar conta dos filhotes, sem a ajuda do gato-pai que, assim como nos seres humanos, não raro desaparece. Embora seu pai também tenha sumido no mudo, igual ao de Dudu, você nasceu num apartamento classe média no bairro da Tijuca, cercado de atenção, carinho e cuidados. Com certeza faz diferença, tanto que nunca ouvi você bufar ou ter qualquer atitude agressiva. Não gostava de estranhos, certo, mas jamais arranhou ou mordeu alguém que insistisse em mexer com você. Você corria e pronto.

Nós nos entendíamos perfeitamente. Uma harmonia que permaneceu intocada até quando nos mudamos da casa para um apartamento. Coloquei tela em todas as janelas a fim de evitar riscos. Que vocês iriam para as janelas observar a rua, eu tinha certeza. Vai que passava um pássaro muito perto ou vocês ouviam os miados de uma gata no cio e se atiravam da janela? Então, a segurança. Percebi que para você nada mudou. Para Dudu… pobre Dudu, ficou melancólico, deprimido.

   

 Dudu na janela com tela         Dudu assapado       Dudu na televisão

Até por isso discordo que os gatos são animais que se apegam ao ambiente, não ao dono como os cachorros. O grande problema do Dudu não foi a mudança de ambiente, foi a prisão.

Na temporada no apartamento, apareceu uma coisa esquisita no teu pescoço. Inchou. Levei você ao veterinário e foi preciso uma cirurgia. Ái, ái, ái… Gosto tão pouco de ir ao médico quanto de levar meus bichinhos ao veterinário. Cirurgia?

   

                                                Ronnie se recuperando da cirurgia no pescoço

Bendito seja, deu tudo certo. Você passou alguns dias com o pescoço enfaixado, tomou os remédios, não se queixou uma vez sequer. O tumor desapareceu para sempre. O tempo passou, mais exatamente oito anos, e voltamos a morar numa outra casa, no mesmo condomínio de antes.

No terceiro mês, dos três da reforma da casa, nos acomodamos eu, você e Dudu num quarto improvisado, pequeno, e dormíamos numa cama de solteiro. Nenhum de nós parecia incomodado.

Embolados na cama

Você estava com dez anos, Dudu com onze. Achei que Dudu logo se lembraria da vida em liberdade e decidi tomar algumas providências para convencê-lo a se conformar com o espaço de passeio no jardim. Estranho, não foi preciso fazer nada, Dudu ficava nos limites da casa. Você, como antes, vez em quando subia no muro para ver lá fora. No mais, se eu tivesse o que fazer no jardim, ficava por perto, de olho no que eu fazia. Você tinha um jeito de andar tão bonito, meu molequinho. Felino e meio malandro.

             

Dudu não prestava atenção em mim, mas também não fugia. E, aí, Dudu ficou muito doente. Foi internado, diagnosticaram pancreatite sem cura e eu também o ajudei a partir num fim de tarde. Enterrei o corpinho dele no nosso jardim.

 

                       Ronnie e Dudu sempre agarrados

Pensei na sua solidão sem o Dudu, mas eu estava determinada a ir encerrando a minha convivência com os animais. Estou na reta de chegada e meus bichinhos são criados para viverem muito. Mais dezesseis anos com outro bicho? Não creio que eu viva mais tanto. Com quem ele ficaria?… Quando realmente se gosta dos bichos, a responsabilidade é grande. Olho para eles e vejo criaturas vivas, criaturas com alma… O olhar deles tem algo de divino. Alguém disse que é o “olhar de Deus”, concordo. Além da minha intensão de não adotar mais nenhum animal, o teu comportamento continuou o mesmo: tranquilo, perto de mim. Se você sentia falta do Dudu, não me passou o sentimento.

        
Ronnie e eu (um pedacinho de mim)

Mesmo no espaço de uma cama king size, você fazia questão de dormir encostado em mim. De preferência em cima das minhas pernas ou nas minhas costas. Quando eu não aguentava mais ficar estática, pedia com carinho e ele concordava em arredar um pouco. Várias vezes tentei te acordar para eu mudar de posição e você num sono pesado. Eu me emocionava. Confiança total.

Passamos juntos por muitas alegrias e tristezas nesta vida. Logo depois da reforma da casa, recebemos a minha mãe muito doente. Papai alternava dias e noites com a gente e no apartamento deles no bairro do Flamengo. Foram dois anos de tensão. Papai caiu na rua, quebrou o fêmur, foi internado e partiu em vinte dias. A situação de mamãe ficou ainda mais delicada. Você entendia tudo. O movimento de estranhos na casa, a necessidade de se afastar um pouco para eu agir, a companhia que você fazia para a minha mãe e ela adorava.

         Ronnie com mamãe

As noites eram tão tensas quanto os dias. Eu precisava levantar várias vezes da cama à noite. Você percebia o movimento, sabia que eu ia voltar e me esperava na cama. Assim que eu me aquietava, ainda que por pouco tempo, lá vinha você se acomodar nas minhas pernas ou se encostar em mim.

– Eu continuo aqui…

Eu entendia, Ronnie.

Aí, aconteceu de eu viajar para levar as cinzas de papai para Portugal. Pensei que ele gostaria que as cinzas fossem misturadas à terra que ele tanto amou e cultivou. Um dia, a conversar no Café, no térreo da casa portuguesa, percebi um gato se aproximando. Eles sabem em quem roçar, repito. E o gato roçou nos meus pés. Claro que retribuí o gesto de aproximação com carinho e muita atenção. Perguntei se alguém conhecia aquele gato. Ninguém conhecia.

– Se calhar o deixaram aqui.

Foi uma época de grandes dificuldades na economia em Portugal e, contam, muitos animais foram abandonados.

– Também teve aqui campanha política e os fogos podem o ter assustado…

Era outra possibilidade. Malditos fogos de artifício que os seres humanos tanto adoram. Pelo espetáculo de cores e movimento, se silenciosos, até aprecio, mas bombas estourando não gosto nada. Os bichos também não. O tal gatinho que ninguém conhecia podia ter fugido assustado, embora os gatos saibam voltar para casa a grandes distâncias. Enfim, não sei a história desse gato antes de mim. Possivelmente alguém o deixou muito mais longe de casa do que ele teria condições de encontrar o caminho de volta; possivelmente, entrou num carro estranho (Como gosta de entrar num carro!…) e, quando o motorista percebeu o intruso, o colocou para fora, lá na aldeia onde nasceu meu pai. Enfim, não sei. Só sei que me apiedei do bichinho magro e muito parecido com você nas cores do pelo. Tanto que o chamei de Ronilda. Na esperança que aparecesse o dono ou a dona, ou seja lá com quem ele convivesse, porque gatos não têm donos e donas, o alimentei. Comprei ração e colocava num pote do lado de fora da casa. Eu teria que voltar para o Brasil e era melhor não nos envolvermos muito.

Uma noite, ao entrar no quarto, quem encontro muito bem acomodada na cama? Ronilda.

É uma aldeia, não se fecha as portas.

   

                                        Ronilda e eu no quarto em Portugal

– Ah, que surpresa!… Como vamos fazer isso?…

Ronilda estava tão à vontade. Quem era eu para sugerir que fosse embora? E se ela se recusasse, menos seria eu para colocá-la para fora. Para mais, fazia frio e chovia. Ao me sentar na cama a pensar numa solução, Ronilda veio se aconchegar no meu colo. Eu tinha sido fisgada. No dia seguinte estávamos as duas no veterinário da cidade para um bom exame de saúde, as vacinas, o chip e o passaporte para a viagem ao Brasil.

– Meu São Francisco, me ajuda nisso. O senhor sabe que eu estava decidida a dar por encerrada a minha ligação direta com os animais. Cadê o dono da Ronilda? Daqui a pouco preciso ir embora. Como ela vai ficar?

Eu cumpria as exigências para a viagem ainda na esperança que aparecesse alguém procurando a gatinha. O veterinário estava furioso porque nunca havia preenchido um passaporte para animais. Foram incontáveis os telefonemas que deu para se informar com colegas e instituições. A consulta demorou quase a tarde toda. O veterinário bufava como fazia o Dudu filhote.

– Olhe, eu pago várias consultas, fique calmo…

– Não se trata disso …

– É justo sim. Pago a mais.

Ele se acalmou. Para colocar o chip, Ronilda precisava de uma anestesia leve porque o aparelho é pequeno, mas a aplicação causa dor.

– Olhe que não é uma gata! É um gato!… Um gato castrado!…

Muita informação. Um gato e castrado. Se era castrado certamente tinha alguém a cuidar dele. Mas a questão imediata era o passaporte, todo preenchido com o nome: Micas. É um nome bem português, mais próprio para se mudar para o Brasil que Ronilda – um improviso.

      

            Passaporte da UE / Micas

– Precisamos mudar o nome… – balbuciei.

– De jeito nenhum! Isto deu-me um trabalhão pra preencher e não tenho aqui mais nenhum passaporte. Fica Micas que serve pra homem e mulher. É como José…

Caramba, José era o nome do meu pai. Eu estava lá porque tinha ido levar as cinzas dele. Por que o homenzinho foi dar logo o exemplo de José?… Maria José é um nome que serve para mulher, mas não serve para homem. José é nome de homem! Micas é nome de mulher!… Consegui conter o ímpeto de iniciar uma interminável discussão com o veterinário.

– Olhe, deixe como está que isso não tem importância. Vá mas é ao Porto pra tirar o documento da fiscalização sanitária para o gato viajar.

Sim, sim e sim. A tarde toda!… Ronilda, depois Micas, dormindo por causa da anestesia, e saímos do veterinário nem Ronilda nem Micas, afinal era um macho. Voltamos para casa e bom tempo depois viajamos para o Brasil.

A chegada em casa com o novo morador não foi nenhuma surpresa. Na intensão de me certificar que estava no meu juízo perfeito, conversei com mamãe pelo telefone. Contei a história da Ronilda, depois Micas. Falei que ia levar o gato para o Brasil. Mamãe riu!… Mamãe estava tão doente que ria muito raramente. Então, passagem comprada na TAP e viajamos.

Na chegada a casa, procurei você imediatamente. Eu estava cheia de saudade do meu molequinho amado. Como sempre que eu sumia por algum tempo, você se comportou de maneira reservada. Por mais que eu explicasse que ia viajar, quantos dias ficaria fora e que você ficaria em segurança, você me recebia com distanciamento. Isso durava no máximo dois dias, depois nos embolávamos novamente como de costume. Só que, dessa vez, além da reserva pelos dias de ausência, havia a novidade do novo morador.

– Ronnie, esse é o Nuno…

Nuno. Nem Ronilda, nem Micas. Nuno é o nome de um dos meus primos em Portugal. Gosto muito do nome – e do primo – e me pareceu bom para um gato. Perguntei ao primo Nuno se ele se chateava de ter o nome no gato. Não.

Foi uma confusão. Ao achar que era a Ronilda, uma fêmea, busquei nos meus conhecimentos felinos e havia boas chances de uma convivência pacífica com você, um macho. No mundo animal, chamado irracional, os machos respeitam as fêmeas. Mas dois machos… Vocês rosnavam um para o outro. E Nuno não se conformava com a limitação dos muros da casa. Fugia muito.

 

    Nuno no muro                             Nuno no telhado

Eu vivia atrás dele no condomínio. Aí, decidi relaxar, seria mais um Dudu na minha vida, sem hora para voltar para casa. Até que ouvi um miado no portão e percebi que o Nuno não conseguia pular o muro de volta. Estava machucado. Alguém bateu nele ou algum carro o atropelou. Foram trinta dias de isolamento porque, nos exames veterinários, Nuno estava com hematomas internos e infecção urinária. Não bastasse a situação tensa e delicada com a doença da minha mãe, acrescentei dois gatos que não se bicavam. E o Nuno, isolado, engolindo sob protesto remédios várias vezes por dia. Que fase!…

Os dias foram passando, tentei uma coleira com uma corda bem comprida para Nuno passear pelo jardim sem fugir, mas ele dava um jeito de se desvencilhar seja lá do que o segurasse e… rua. Os passeios no jardim passaram a ser vigiados. No mais, dentro de casa. Ainda assim, não se pode piscar que Nuno pula o muro e corre.

O comportamento do Nuno mudou totalmente no Brasil. Não vinha para a minha cama. Nem chegava perto. Você continuou com o hábito de ficar do meu lado, talvez, até para mostrar ao Nuno quem era o meu dono. A impressão que tenho é que Nuno dizia:

– Estou me lixando pra ti e pra ela.

Mas para a minha mãe não. Interessante, Nuno chegava-se à minha mãe. Várias vezes o encontrei perto dela e ao lado dela na cama.

 

                                           Nuno com mamãe

Também dizem que gatos percebem quem está precisando de boa energia e se aproximam para ajudar. Sem dúvida, quem mais precisava de boa energia na casa era mamãe. E se ela me pegasse tentando tirar o Nuno de cima dela, reclamava.

– Deixa ele. Vai embora tu.

Minha irmã ainda brincou:

– É, mãe, tem um outro portuguesinho lá da aldeia na sua cama…

Brincou, mas nem tanto.  Interessante Nuno me aparecer quando fui deixar as cinzas do pai em Portugal. E se apegar a mamãe no Brasil.

Pelo bem de todos, por algum acordo que não participei e desconheço os detalhes, você e Nuno combinaram uma convivência pacífica. E Nuno passou a frequentar a minha cama ao teu lado.

  

E você ficou doente. A idade, o problema nos rins muito comum em gatos idosos… até que precisou ser internado com outras complicações. Você era caseiro demais para passar dias e noites numa clínica veterinária, com barulho e pessoas estranhas. O meu molequinho amado estava em sofrimento, por causa da doença e por estar fora de casa, longe de mim. Eu em sofrimento por ele estar sofrendo.

– Ele vai precisar de uma transfusão de sangue. Não reage aos medicamentos.

Já vi esse filme de transfusão de sangue com um cachorro e o final foi horrível. Foi só prolongar o sofrimento do bicho e subir à estratosfera a conta do veterinário. Decidi que terminaria ali o seu sofrimento. Agradeci muito por tudo de bom que você me trouxe – e foi muito mesmo -, pedi perdão pela minha decisão que nos separaria e chorei miseravelmente agarrada a você enquanto a veterinária fazia o procedimento.

O seu corpinho está enterrado no nosso jardim, ao lado do Dudu. Nuno não viu, mas por vários dias, nos passeios vigiados, permaneceu deitado no local. Assim como frequentemente está no quarto onde ficava mamãe ou na porta do quarto como quem espera alguém voltar ou toma conta de uma lembrança.

  

                Nuno na porta do quarto de mamãe

E aqui estamos nós, eu e Nuno. Ele até dorme na minha cama, mas é só. Nunca mais se chegou para pertinho como fez em Portugal. Penso que ele pensa:

– O que eu queria era ficar lá contigo… Tu me trouxeste pra tão longe!…

Pois é, de certo Nuno imaginou que eu morava lá na aldeia. Eu também pensei que ele era uma gata chameguenta … Enfim, nos enganamos. Mas Nuno é um gato do bem. Bufa e rosna quando é contrariado, mas não passa disso. Não morde, nem arranha. Ao contrário de você, adora pessoas estranhas. Chegou a pesar 12 quilos. Está fazendo regime. No exame de sangue que ele fez quando você adoeceu a funcionária do laboratório me ligou.

– O gato Nuno fez jejum de 12 horas?

– Fez.

– Estranho, o sangue dele está gorduroso.

Dieta!… Em quatro meses perdeu dois quilos. Reclama dia e noite. Só pensa em comida. E tem manias esquisitas que ajudo a cultivar. Adora se deitar em cima de sapatos e similares.

   

   

Nuno gosta de carinho com o pé. Se faço com a mão, resmunga e se afasta. Com o pé, adora.

 

Nuno sabe ser charmoso…

   

   

Percebo que Nuno é um gato triste. Penso que é a falta da liberdade que tinha quando me apareceu sujo e magérrimo.

        Nuno inconsolável na janela

O gato do vizinho continua com as visitas diárias. Você pouco ligava para ele, mas Nuno parece que gosta.

 

Esse gostosinho era filhote quando me encontrou na entrada da garagem. Chegou com o miado frágil dos desamparados antes do Nuno chegar e de você partir. Resisti bravamente.

– Coisinha fofa, não vai dar. Procura mais um pouquinho na vizinhança…

Não tardou, o vizinho veio cheio de orgulho me contar que havia adotado o pequeno que para no portão da nossa casa e mia como quem pede educadamente para entrar. E lá vou eu abrir o portão.

– Entra, filho. Tudo bem com você?

Nuno e a visita se cheiram, correm um pouco, ameaçam trocar uns tapas, mas, por ora, estão se dando bem. Quando tenho o que fazer ou penso que é hora de terminar o passeio vigiado do dia, coloco um punhado de ração do lado de fora e o vizinho sabe que, além do mimo, é hora de ir embora.

É possível que o Nuno sinta falta de alguém em quem confiava. Talvez exista alguém que ainda procure por ele e jamais vai imaginar que o bichinho amado está no Brasil. Nuno tem uma história, com certeza. E está construindo outra história comigo. Assim vamos vivendo da melhor maneira possível, os dois sem entender como a vida se tornou o que se tornou. Não entendemos para onde foram as criaturas que amamos. Como desapareceram de nossas vidas?

Desculpe-me meu molequinho amado, meu Ronnie querido, mas tudo isto foi escrito em meio a muitas lágrimas. Sei que você não gostava de lágrimas, como não gostava de gritos. Você ficava assustado, e eu me acostumei a conter minhas empolgações. Lembro nos jogos da Copa do Mundo de Futebol quando a seleção brasileira jogava. No momento do gol, eu engolia a empolgação para não assustar você. Você não está mais aqui para eu te assustar e continuo engolindo a empolgação. Da mesma forma, você me fazia conter os momentos de agonia, de desespero até, e eu engolia o choro. Sem você, e também pela imensa falta que você me faz, choro muito, à vontade. Dói. Ao mesmo tempo é bom reviver nossa história tão cheia de brincadeiras, cuidados e carinho.

Mesmo no espaço de uma cama king size, você fazia questão de dormir encostado em mim. De preferência em cima das minhas pernas ou nas minhas costas. Quando eu não aguentava mais ficar estática, pedia com carinho e ele concordava em arredar um pouco. Várias vezes tentei te acordar para eu mudar de posição e você num sono pesado. Eu me emocionava. Confiança total. Obrigada, meu molequinho amado.

Deixe sua opinião!