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O imponderável

Cada vez mais o imponderável me mete medo. Houve um tempo em que chamava certos acontecimentos de acaso. Ao ler num livro kadercista que “O acaso leva muito tempo para ser tramado”, aceitei outra afirmação coerente: “O acaso não existe.” Então, o que acontece? Como acontece? Estou neste ponto, aqui e agora, por causa de um atropelamento no início desta noite no calçadão da praia de Copacabana. Um carro, ainda não se sabe como, deu um salto e aterrizou num arrasto em cima de dezenas de pessoas. Um carro preto parou encalhado na areia da praia. O que, suponho, segundos antes, era um espaço de pessoas em animadas conversas, relaxadas depois do sol e da água do mar, refrescadas pela brisa marinha num dia em que reapareceram os famosos 40 graus no Rio de Janeiro, deleitadas com o sabor do sorvete doce e gelado e com paqueras que naturalmente acontecem em meio a pessoa próximas umas das outras, o desespero, a dor, o incompreensível, a tragédia. Em segundos, o desejo de pegar uma fresca ou simplesmente tomar um sorvete, pode ter tirado de um pai e uma mãe o bebê de 8 meses. O carro preto moeu o carrinho colorido. Em segundos, uma ou outra pessoa que se preparava para voltar a casa, jantar, talvez ver o capítulo da novela, estava sendo socorrida por semelhantes e paramédicos. A noite que chegava tranquila tornou-se a porta do inferno. Que importa se o motorista – ele afirmou na delegacia – teve um ataque epiléptico ao volante do carro preto? Podia ter o ataque diante de um poste, sozinho; ou ao ligar o carro ainda estacionado. Podia não ter tido ataque algum e prosseguido o caminho, talvez também para casa ou para um lugar que não fosse uma delegacia de polícia acusado de homicídio culposo ou doloso. Podia ter acontecido nada, mas aconteceu uma crueldade coletiva. A está hora, pessoas que deveriam estar no acolhimento do que invoca a palavra “lar”, estão em hospitais, machucadas, em choque, ao menos uma no limiar invisível e imprevisível entre viver e morrer. Parentes, amigos, companheiras e companheiros em estado de tensão à espera do que vai acontecer nesse futuro tão breve decido há poucos minutos, no passado. Inevitável voltar a perplexidade para Deus. Existe uma programação mesmo? O encontro daquele carro com aquelas pessoas foi cuidadosamente tramado? Por que? Para quê? Nem os atingidos, nem o motorista que dirigia o carro assassino desejaram esse encontro. Então, por que? Para quê? No lado hard da crença, possivelmente são todos grandes pecadores e merecem o golpe. Mas, o bebê? E as outras duas crianças? Que pecados poderiam ter? Que tempo tiveram para pecar? Situações acontecem, como esses encontros marcados com algo ou alguém; encontros que comparecemos sem sermos avisados.  O imponderável. A indiscutível contastação de que nada está sob o nosso controle. Uma ida a casa do vizinho, por mais perto e inocente que seja, pode não ter volta. Um dia, numa tarde como tantas outras, saí para comprar pão num supermercado próximo de casa. Caiu um temporal com exagero de raios e trovões. Um raio caiu muito perto de mim. Um clarão, o calor da energia, o chão a tremer nos pés… Quando me recobrei do estado de choque, pensei: Eu podia ter terminado a vida aqui. Mas não terminei sabe-se lá por quê. Também não tive vontade de ir até a praia dar um passeio nesta noite de quinta-feira. Podia ter tido. O imponderável. O pai do bebê apareceu no telejornal. Estava na delegacia. Disse ao repórter que o motorista era um assassino, que não devia nem ter carteira para dirigir. Não chorava. Estranhei, mas não tenho que estranhar nada. Nem por ele estar, aparentemente, sem um arranhão enquanto o bebê havia morrido no carrinho esmagado pelo carro preto. O pai estava longe do bebê? Perguntas que talvez tenham respostas coerentes nas próximas horas, mas nenhuma coerência combina com o acontecimento. Estamos à disposição do que não temos nenhum controle. Na minha crença, repleta de momentos de grandes dúvidas, peço cada vez mais a Deus que me livre das “situações-limite”, essas em que podemos ser autores e vítimas de tragédias com a mesma probabilidade.

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