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MEU QUERIDO ALFREY – capítulo 3

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Alfrey admirando a vista do mar

 

Meu Querido Alfrey capítulo 3

Pois foi assim: Alfrey cresceu e encorpou. Gordo não, forte. Ele com quatro patas e eu com apenas duas. De um dia para o outro, ele era quem passeava comigo. Onde ele queria ir, eu ia junto. Para meu maior desespero, morávamos num apartamento no morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, no conjunto de autoria do arquiteto Oscar Niemeyer. O morro fica entre os bairros do Leblon e de São Conrado. São apartamentos duplex, de dois quartos, com a vista da entrada da Baía de Guanabara. Uma vista espetacular.

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Alfrey e Xandi na cama apreciando a vista

 

Naquela época, pessoas com profissões esquisitas – como jornalistas – moraram, moravam ou morariam lá. Então, é um morro, cortado por ruas em que se sobe … e se desce. O bichinho precisava sair do apartamento pelo menos duas vezes por dia para fazer as necessidades e se exercitar. Enquanto ele pesou menos que eu – que peso pouco – deu tudo certo, mas Alfrey rapidamente passou a pesar mais que eu. Mais peso, quatro contra duas patas, ele ditava as regras dos passeios. Meu adorável Alfrinho não podia ver outro cachorro ou um gato que saía a correr. Eu ia junto. Quando era para cima, menos mal que a gravidade ajudava a frear o bicho, mas para baixo… Como dizem meus parentes portugueses: “Era sempre a descer”.

– Alfrey, para!!!!… Para!!!!… Quieto!!!… Alfrey!!!… – era eu aos berros descendo morro abaixo puxada pelo cachorro.

Um espetáculo. Eu então repórter da TV Globo, rostinho conhecido, vizinha manjada, atropelando-me nas próprias pernas a tentar correr junto com meu adorável cãozinho. Num final de tarde, descendo, Alfrey avistou um cachorro na rua de baixo. Quando eu avistava o alvo de interesse antes dele, simplesmente sentava no chão e o puxava para junto de mim pela coleira. Tive que me render e usar a coleira com as garras do enforcador viradas para o pescoço.

Scanner_20160409 (59)Às vezes funcionava e eu lá ficava no chão, agarrada no pescoço do Alfrey, tentando convencer meu cãozinho a esquecer fosse lá o que lhe tinha chamado a atenção. Ah, o dia todo num apartamento com dois gatos e, na hora do passeio, não podia se soltar?!… Não podia porque havia pessoas e veículos nas ruas. Mas, num fim de tarde… Alfrey avistou um cachorro antes de mim, começou uma corrida desvairada ladeira a baixo e eu fui junto. Eu enrolava a guia da coleira na mão justamente para puxar com mais firmeza o enforcador se necessário. Na descida desabalada, com a guia enrolada na mão, eu mal colocava os pés no chão ao ser puxada pelo Alfrey. A rua de baixo foi chegando e teríamos que fazer uma curva fechada à esquerda. Pouco antes consegui soltar a guia da mão. Alfrey fez a curva; eu fui reto, para cima do capô de um carro estacionado. Doeu para caramba. Achei que tinha me quebrado toda, mas me pus de pé rapidamente preocupada com o Alfrey que prosseguia a corrida rua abaixo.

– Alfrey, volta!!!! …. Alfrey!!!… Alfrey, para!!!!… – era eu me esgoelando.

Alfrey corria e uma clareira se abria entre as pessoas que subiam a rua. Fim de tarde, pessoas voltando para casa, hora de mais movimento.

– Alfrey, aqui!!!…

Alfrey resolveu me escutar – e me obedecer – e iniciou o procedimento de frenagem. Lembro-me bem daquele bundão arriando nas patas traseiras, derrapando, enquanto as patas dianteiras tentavam parar. Quando conseguiu, olhou para trás. Juro que ele me pareceu surpreso por eu ter ficado tão para trás.

– Vem cá!!!… Vem!!!… – era eu socando as minhas pernas.

Ele veio voltando devagar. Percebeu que havia feito besteira. Alfrey ficava envergonhado quando me via zangada. Foram raras essas vezes. Lembro-me dessa que me custou bons arranhões e hematomas nas pernas ao trombar com o carro ( afinal não quebrei nada ) e de quando ele comeu quase todos os brigadeiros que estavam em cima da mesa da sala decorada, para a festa do meu aniversário. Aniversários meus tinham brigadeiro e cachorro-quente. Alfrey adorava chocolate. Percebi algo fora de ordem ao avistar no chão dezenas de forminhas brancas, vazias. A essa altura morávamos numa casa grande e a mesa, também grande, estava repleta de bandejas de brigadeiros. Alfrey era muito mais alto que a mesa. Imagino que tenha passado a bocarra pelas bandejas sem medo de ser feliz.

– Alfrey, cadê você? – era eu olhando desvalida para a mesa bagunçada.

Encontrei-o deitado debaixo da escada com cara de quem comeu e gostou muito. Mas ele sabia que tinha feito bobagem.

– Alfrey… você comeu dúzias de brigadeiros…

Numa eventual asneira, ele fazia uma carinha de “foi mal, me desculpa aí”, a me olhar de baixo para cima… Sinceramente, paciência se os brigadeiros haviam sumido da decoração da mesa; e olha que roubar brigadeiros de mim é arriscar a vida. A minha preocupação era com o efeito de tanto chocolate. Digamos que de cinco bandejas grandes, lotadas de bolinhas de brigadeiros, sobrou uma e meia. Em meio à festa de aniversário, eu poderia ter um dog alemão com dor de barriga. Acredite, não é bonito. Tudo é em grandes proporções. Mas, quer saber? Se não quer, conto assim mesmo: Alfrey ficou muito bem, obrigado. Nenhuma indisposição, muito menos dor de barriga. E foi com a cabeça baixa, com o olhar de “foi mal, me desculpa aí” que ele chegou perto de mim na volta da correria rua a baixo.

– Caramba, Alfrey, tô toda machucada… – resmunguei e peguei a guia da coleira de volta. – Bora pra casa…

Daí em diante, percebi que não tinha condições de levar Alfrey para os passeios diários. Tentei ainda em uma ou duas madrugadas, mas era aparecer outro bicho e começava a confusão. A diferença era não ter plateia nas ruas para assistir ao espetáculo. O que fazer? O bicho não poderia ficar preso no apartamento para sempre. Nem sair apenas uma vez na madrugada.

 

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( continua… )

 

2 thoughts on “MEU QUERIDO ALFREY – capítulo 3

  • Judson Serrat

    Fernanda, como você consegue contar estórias com tamanha leveza? Confesso que ultimamente estou com dificuldades de me concentrar, com exceção de quando exerço meu oficio, mas, ao ler sobre o Alfie e a Ferrari, me transportei completamente! Continue a nos brindar com sua arte!!

  • Fernanda Esteves

    São histórias que, ao mesmo tempo, me dão prazer e me enchem de saudade. Que bom que saem leves. Agradeço o incentivo. Beijos

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